29 setembro 2008
Mata-Munhoz
Não acredito na felicidade
Senão no rosto da mulher feliz
De resto, nada além de diz-que-diz
No rumo incerto d`inútil vontade
De tudo que possa em si existir
Afora o amor, só haverá matéria
Vazia, insípida e, ademais, estéril
Para o bem ou mal de nosso devir
Deste mundo nada se há de aprender
Pois de profundo tudo jaz no oculto
Seja ao bom peão ou ao homem culto
No mais, cabe somente apreender
O que nos possa vir ao coração
embalado em amor e em louca canção
23 setembro 2008
Bruel
Vegetariação,ou, Aquilo (o) que Somos
"... admitamos, ainda, que os invisíveis conservem sempre sua identidade, enquanto que com os visíveis tal não ocorre." Platão
A cidade se recolhia através de um crepúsculo plúmbeo, meio-cinza-alaranjado, em mais um dia de rotina. A noite demorou a cair, ofuscada pela intensidade com que as cores, o verde embaçado das ruas arborizadas, se deleitavam em sua lenta propagação. No entanto, caiu pesada e sem estrelas, núvens baixas e carregadas, como o céu distorcido e grotesco de El Greco. A cidade, agora soturna e quieta, desfilava suas gatas e morcegos pelas ruas vazias.
Numa confluência entre bairros que compunham a pequena zona central, uma rua estreita e sem luz. Nela, um pequeno prédio, poucos andares, escuro e de muro descascado, quase abandonado. No último andar, num apartamento de fundo, um sujeito lá se encontrava, talvez por dois ou dez anos, não se sabe ao certo.
Ali residindo em plena veia cava, nervo óptico central das cidades, estes centros polimorfos, residindo ali isolado de tudo e de todos, imperscrutável, sob frio e profundo silêncio.
Sempre, durante quanto tempo não se sabe nem jamais se saberá, ao entardecer, esse vegetariano assentava-se à pequena mesa de madeira rota, peça chave do excasso aparato mobiliar, e iniciava seu ritual metódico para matar a fome. Não se sabe como e do que vivia ou fazia para sobreviver. Talvez um desenhista, deduzindo-se pelos papéis que continham esboços e perfis de mulheres nuas. Tais silhuetas, distorcidas por uma atmosfera de bruma e escuridão, se reparadas com atenção, revelavam as mesmas formas e uma semelhança que se pensaria pertencerem à mesma mulher. Músico, jamais seria, simplesmente devido ao abissal e grave silêncio que emanavam aquelas paredes. Não havia relógio naquele espaço estranho. O tempo parecia ser medido através de eternidades.
No exato instante em que terminou de mastigar o último pedaço de alho, ouviu nas escadas passos pesados e duros, uma marcha de um único sujeito, que culminou com um toque, um toque apenas, lacônico e forte na única porta. Sem se pronunciar, não havendo espelho mágico em sua porta e como que já pressentindo quem estaria a fazer tal visita possivelmente esperada, o pitoresco anfitrião levantou-se maquinalmente e destrancou-a sem, no entanto, abri-la. A porta se escancarou. Seus olhos secos e miudos expressaram num arregalar o horror e o absurdo da presença do outro, sim, ele próprio, perplexo diante de si mesmo, seu eu o visitante, trajando roupa rota e fora de moda, mudo e ausente diante do espelho vazio.
Cruzando a porta se dirigiu até a mesa.
continua...
"... admitamos, ainda, que os invisíveis conservem sempre sua identidade, enquanto que com os visíveis tal não ocorre." Platão
A cidade se recolhia através de um crepúsculo plúmbeo, meio-cinza-alaranjado, em mais um dia de rotina. A noite demorou a cair, ofuscada pela intensidade com que as cores, o verde embaçado das ruas arborizadas, se deleitavam em sua lenta propagação. No entanto, caiu pesada e sem estrelas, núvens baixas e carregadas, como o céu distorcido e grotesco de El Greco. A cidade, agora soturna e quieta, desfilava suas gatas e morcegos pelas ruas vazias.
Numa confluência entre bairros que compunham a pequena zona central, uma rua estreita e sem luz. Nela, um pequeno prédio, poucos andares, escuro e de muro descascado, quase abandonado. No último andar, num apartamento de fundo, um sujeito lá se encontrava, talvez por dois ou dez anos, não se sabe ao certo.
Ali residindo em plena veia cava, nervo óptico central das cidades, estes centros polimorfos, residindo ali isolado de tudo e de todos, imperscrutável, sob frio e profundo silêncio.
Sempre, durante quanto tempo não se sabe nem jamais se saberá, ao entardecer, esse vegetariano assentava-se à pequena mesa de madeira rota, peça chave do excasso aparato mobiliar, e iniciava seu ritual metódico para matar a fome. Não se sabe como e do que vivia ou fazia para sobreviver. Talvez um desenhista, deduzindo-se pelos papéis que continham esboços e perfis de mulheres nuas. Tais silhuetas, distorcidas por uma atmosfera de bruma e escuridão, se reparadas com atenção, revelavam as mesmas formas e uma semelhança que se pensaria pertencerem à mesma mulher. Músico, jamais seria, simplesmente devido ao abissal e grave silêncio que emanavam aquelas paredes. Não havia relógio naquele espaço estranho. O tempo parecia ser medido através de eternidades.
No exato instante em que terminou de mastigar o último pedaço de alho, ouviu nas escadas passos pesados e duros, uma marcha de um único sujeito, que culminou com um toque, um toque apenas, lacônico e forte na única porta. Sem se pronunciar, não havendo espelho mágico em sua porta e como que já pressentindo quem estaria a fazer tal visita possivelmente esperada, o pitoresco anfitrião levantou-se maquinalmente e destrancou-a sem, no entanto, abri-la. A porta se escancarou. Seus olhos secos e miudos expressaram num arregalar o horror e o absurdo da presença do outro, sim, ele próprio, perplexo diante de si mesmo, seu eu o visitante, trajando roupa rota e fora de moda, mudo e ausente diante do espelho vazio.
Cruzando a porta se dirigiu até a mesa.
continua...
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